Por Miguel do Rosário
O último erro da mídia
Quatro famílias, quatro cavaleiros do
apocalipse. Civita, Frias, Mesquita e Marinho. Todos crias da ditadura, de
maneira que a luta contra eles configura a derradeira batalha contra o regime
militar, do qual eles são herdeiros. É como se os filhos de Pinochet dominassem
a mídia chilena. Ontem e hoje os grandes jornais e telejornais dedicaram-se a
atacar Lula. Artilharia de todos os lados. Os colunistas, por sua vez, como
sempre de mãos dadas, repetem em uníssono que Lula pode e deve ser
investigado.
Acontece
que Lula é alvo de uma devassa desde o dia em que foi candidato pela primeira
vez a presidente da república, em 1989. Desde o início, todo o tipo de tramóia e
manipulação midiática tem sido perpetrada contra ele.
Como
presidente, viu seu filho ser alvo de investigações, ofensas e calúnias, viu o
apartamento do seu irmão ser invadido pela própria Polícia Federal, e agora vê a
mídia lhe acusar, com base em fofocas, de ser amante de sua secretária e
cúmplice dela. Nada jamais se encontrou que incriminasse o ex-presidente, após
tantos anos.
Com
ele convalescente de um câncer na garganta, portando um edema que ainda lhe
provoca dores sempre que fala muito ou se estressa, vemos a mesma mídia, que
pratica todo tipo de pistolagem branca em épocas de eleições, iniciar mais uma
campanha coletiva para denegrir o ex-presidente da república mais querido da
história nacional.
E
com que fundamentos? Com base em declarações de um bandido, de um testa-de-ferro
de Daniel Dantas, cujo nome, aliás, jamais aparece nas matérias que tratam de
Marcos Valério. É este o banqueiro, provavelmente, a que Lula se refere quando
falou, em Paris, sobre a proteção da imprensa a determinadas figuras do mercado
financeiro.
O
plano já está montado. Produzir uma atmosfera de “comoção nacional”, pressionar
o Ministério Público a abrir uma investigação sem provas, e depois achacar o
Judiciário em busca de uma condenação baseada apenas em “indícios” e “ilações”,
as quais são fornecidas gratuitamente por editoriais e colunas.
O editorial do Estado de hoje traz aquele tom
imperioso da casa grande.
O
jornal tem o direito de opinar como bem entender. O problema não é esse, e sim a
fragilidade da República em se submeter às orientações de uma mídia reacionária
e comercialmente tendenciosa. Por que uma apuração se impõe? O que são as
intrigas de Marcos Valério em comparação ao volume gigante de provas existentes
no escândalo da privataria tucana, onde, aí sim, há valores mastodônticos,
propinas sensacionais, atos de ofício em profusão, provas, documentos, e, mais
importante, trágicos e irreversíveis danos ao interesse nacional?
Confiram
esse trecho do editorial, onde o Estadão ameaça explicitamente o
procurador-geral da República, Roberto Gurgel:
A decisão cabe ao procuradorgeral Roberto Gurgel. Ele vai esperar o término do julgamento do mensalão, na próxima semana, para resolver se tomará a si a incumbência ou se a encaminhará a uma instância inferior do organismo, dado que Lula, ex-presidente, não goza de foro privilegiado. Estará decepcionando quem passou a admirá-lo pela atuação que teve no caso do mensalão, se decidir pelo arquivamento das denúncias. Pressões nesse sentido não faltarão.
Ontem
o Globo noticiou que Cachoeira, ao ser solto pela enésima vez pelo sempre
solícito desembargador, Tourinho Neto, declarou que é o “garganta profunda do
PT”. Faltou ao jornal comentar o seguinte: que Cachoeira SEMPRE foi o garganta
profunda do PT, porque seus interesses estão ligados aos adversários do partido.
Quem eram os aliados maiores de Cachoeira: Marconi Perillo, governador de Goiás
pelo PSDB; e Demóstenes Torres, senador pelo DEM.
Valério construiu sua fortuna em cima de
serviços prestados a figurões do PSDB. O que a justiça precisa investigar são as
relações entre ele e Daniel Dantas. Os recursos de Dantas saíram de cofres
controlados pelo Opportunity, que por sua vez emergiu do processo de
privatização como controlador de um dos maiores e mais lucrativos complexos de
telefonia no mundo. Foi Dantas que deu o dinheiro para a SMPB de Valério,
através de contratos milionários de publicidade, os quais abriram ao empresário
acesso a crédito ilimitado junto às instituições financeiras.
Valério,
Cachoeira e Daniel Dantas são bandidos que atuavam na seara política e são
indivíduos tremendamente astutos. Em comum: são adversários do partido dos
trabalhadores e entendem que, na atual conjuntura política, o melhor para eles
sempre foi desviar a indignação pública para os figurões do PT.
A
manipulação surge em toda parte, não dá nem para linkar e comentar tudo no blog.
Está além das minhas forças. Em primeiro lugar, a repetição. Em toda matéria que
trata de qualquer assunto, o jornal repete as acusações de Marcos Valério. O
Instituto Lula organizou um grande seminário na França, cujos debates
repercutiram no mundo inteiro, mas quando se referem ao discurso de Lula, a
imprensa brasileira primeiramente abre os artigos com longos prefácios sobre as
recentes acusações de Valério.
*
Entretanto,
o grande erro da mídia é acreditar que poderá destruir o símbolo. Ora, isso
apenas ocorreria se fosse possível forçar os brasileiros vomitarem todo alimento
consumido desde 2002; a devolverem todos os recursos do Bolsa Família e tudo que
com eles adquiriram; a devolverem as casas que compraram; a renegarem a
esperança que lhes encheu de otimismo e alegria desde então.
Muito se fala sobre ética e moral, mas tudo
que vem desses moralistas a soldo pode ser lançado ao lixo. Ética e moral são
conceitos filosóficos profundos, cuja verdadeira apreensão precisa de um
sentimento autêntico de amor ao povo, ao homem e às suas dificuldades.
Moralista de jornal é muito mas muito pior que filósofo de botequim! Em geral,
é um diletante sem alma, um intelectual que há tempos vendeu suas habilidades a
quem lhe pagou mais.
*
Para
escrever esse post, reli o capítulo de Suetônio que fala de Júlio César. Para
quem não sabe, Júlio César pertencia ao partido popular, que era a esquerda da
época. Era aliado dos tribunos e sua força residia, sobretudo, no prestígio de
que gozava junto ao povo, o que lhe permitia ganhar facilmente todas as eleições
de que participou.
Júlio César foi vítima de todo o tipo de
acusações, ofensas, calúnias, que se pode imaginar. Poetas escreveram livros
repletos de sátiras maldosas sobre sua pessoa. Pra começar, durante toda a sua
vida, César foi perseguido pelo boato de que era homossexual, e que, logo no
início de sua carreira como militar, prostituíra-se ao rei da Bitínia, Mitilene.
Seus adversários abusavam da acusação, descaradamente. Até o elegante Cícero
usou a história para fustigar César.
Sabe
o que é mais engraçado? É que o povo incorporou alegremente a história, e após
as grandes vitórias militares de César na Gália, os soldados festejavam ao redor
de fogueiras entoando canções burlescas que falavam de César e Mitilene. E isso
sem deixar de dedicar um grande amor a seu líder. E sabe porque amavam César?
Porque ele, e só ele, mandou duplicar, a título eterno, o soldo de todos os
soldados, ampliou a distribuição gratuita de trigo, mandou construir bibliotecas
em todo o império, impôs um ordenamento mais racional ao calendário, fez leis
agrárias mais justas, distribuiu terras, baixou o preço dos aluguéis. Enfim,
seguiu a máxima que aprendera com seu tio, Mário, que foi o grande líder da
esquerda romana: fique sempre ao lado do povo, é dele que vem o
poder.
Suetônio, todavia, narra sem pejo todas as
histórias escabrosas em que César se envolveu para conservar o poder.
Entretanto, essa figura tão polêmica, atravessou os séculos com sua reputação
incólume às acusações do que fez nos bastidores da baixa política romana. Mesmos
os adversários tardios de sua figura atacariam as atrocidades do império romano,
não a figura em si de Júlio César, sobretudo porque em vista dos ditadores
levianos sanguinários que lhe sucederam, sua história ganharia ainda mais
dignidade. O ódio de seus inimigos de então, ao esfaquearem-no covardemente no
Capitólio, o transformaria num mártir.
Sem
querer estabelecer uma ridícula comparação entre Lula e Júlio César, podemos
sempre ver similitudes na história de todas as grandes lideranças populares. Via
de regra, são sempre odiados pelas elites da época.
E
assim como não foi Júlio César quem inventou a corrupção na república romana,
não é Lula inventor do baixo nível das jogatinas políticas de
Brasília.
O
povo não ama seus líderes porque os consideram santos. Não é assim que nascem os
mitos políticos. Ao contrário, a percepção de que seus líderes, para vencerem,
precisaram atravessar a mesma odisséia de mesquinharia, inveja, intriga, que
experimenta todo ser humano em busca de ascensão social; que tiveram de lidar
com pessoas ruins, abafar erros, seus e de seus aliados, conviver com
adversários, e sobretudo, cometer muitos equívocos; quando vêem que seu líder
também vivenciou tudo isso, aumenta-lhes o amor que lhe dedicam. Admira-se e
respeita-se o que os líderes tem de superior, mas o amor, sentimento
infinitamente mais poderoso, conquista-se pela afinidade. É assim que admiramos
um escritor por seu talento, mas o amamos quando ele se mostra uma pessoa
simples, “igual a todo mundo”.
É
por isso que os santos são amados por beatas, mas as grandes lideranças
políticas são amados pela maioria do povo. Historiadores, por exemplo, com
exceção daqueles do Vaticano, não costumam se interessar muito pela vida de São
Judas Tadeu e pela conjuntura histórica de sua época; mas figuras políticas,
necessariamente polêmicas, como Getúlio e Lula, serão sempre
interessantes.
A
mídia, portanto, comete um erro fatal ao insistir numa guerra covarde contra
Lula. É ótimo que assim seja. Com isso, ela atiça o PT a convocar, finalmente, a CPI da Privataria Tucana;
produz um sentimento crescente de indignação contra a manipulação que a mídia
faz desse bem público, que é a informação. Se a coisa se limitasse aos jornais
impressos, tudo bem, mas atinge rádio e televisão, concessões públicas,
produzindo um ambiente constantemente envenenado, interferindo eleitoralmente e
até mesmo na estabilidade política do país. Pior, agora temos a prova que a
mídia conseguiu aliados perigosos, a cúpula do Ministério Público e a maioria do
Supremo Tribunal Federal, gerando em milhares de brasileiros, atentos ao
universo das tramóias políticas, o temor de que se repita aqui o vergonhoso
golpe branco que assistimos em Honduras. Quando ela ataca figuras menores do PT,
o povo assiste a tudo curioso. Quando ataca seu líder, no qual votou, ao
qual emprestou – democraticamente – apoio entusiasmado, e que ainda respeita
profundamente por tudo que fez ao país, então movimentos sociais, sindicatos,
estudantes e trabalhadores, toda a massa heterogênea, que normalmente quase
nunca concorda entre si, cerra fileiras em torno de uma só bandeira. Nada melhor
como um inimigo em comum para unir as pessoas. Essa união é o preço que a mídia
pagará por suas leviandades.
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